Meus Rumos

Kelma Brito

Vamos entrar num acordo

Autora: Kandy Saraiva

Próximo está o dia em que a assembléia perderá o acento, dia este em que não poderemos mais ter idéias, assim, de um modo aberto. Pelo menos não na escrita. Nela, ideia e aldeia, plateia e teia ficarão assim, sem distinção do ditongo aberto ou fechado. Tudo porque uma das regras do Acordo Ortográfico define que os ditongos abertos “ei” e “oi”, apenas de palavras paroxítonas, perderão o acento. Cuidado para não colocar a carroça na frente dos bois. Já li em um importante jornal de grande circulação a generalização da regra, fruto da má interpretação do que já começou confuso, talvez um presságio da epopéia (ops, epopeia) que será colocar todos os pingos nos is no que se refere à correta aplicação das novas regras. A matéria trazia um quadrinho desses didáticos, utilizados como recurso visual para “simplificar” o blablablá técnico exposto na notícia. Dizia assim: “cai o acento das palavras terminadas em éi e ói”. Nada mais errado. “Quartéis” e “heróis” continuam com seus acentos, não devido à importância semântica que têm em uma nação de respeito, mas por serem palavras oxítonas. Um ato heróico, por exemplo, já cai na regra, passando a ser simplesmente heroico, o que confirma o equívoco da notícia.Mudará também o emprego do hífen, que, em vez de ter sido simplificado, considerando palavras que normalmente geram dúvidas quanto à grafia, foi um pouco complicado. Em meio a autorretratos, radiorrelógios e semirretas, restou um grande contrassenso, assim mesmo, tudo junto e com dois esses. Uma das novas regras, por exemplo, diz que deve ser grafado tudo junto o vocábulo que perdeu a noção de composição, ou seja, que tem uma unidade semântica: por exemplo, a palavra “paraquedas”, entendida como o objeto dobrável que reduz a velocidade da queda, não mais o verbo “pára” (que, a propósito, perde o acento diferencial) e o substantivo “quedas”. Entretanto, o guarda-chuva continua com hífen. Coisa dos mandachuvas.Do mesmo modo, a partir da vigência do Acordo, você será re-embolsado, re-empregado, re-encaminhado, re-educado, porque, nas composições em que os prefixos terminam em vogal e o segundo elemento inicia-se por “h” ou por letra igual à última do prefixo, usa-se hífen. Mas há exceções: você vai continuar cooperando, porque cooperação requer união, convenhamos, não ficaria bem com um hífen.Embora os vocábulos “pára”, “pêra” e “pólo” percam o acento diferencial, ele continua válido em “pôr” (do verbo “poder”) em contraposição a “por” (preposição). O trema deixa de existir, exceto em palavras derivadas de nomes próprios que o contenham (mülleriano, hübneriano etc.) — eu me pergunto como ficará a identidade do Pato Qüem, personagem de um livro infantil. A onomatopeia vai virar um belo de um pronome.O objetivo do Acordo é unificar a língua portuguesa em foros internacionais, fortalecendo politicamente os países que a têm como idioma oficial. Para entrar em vigor, o Acordo Ortográfico precisava ser ratificado por no mínimo três países da CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o que já foi feito por Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Brasil e Portugal. Por aqui, entretanto, só passa a valer após decreto presidencial, ainda em fase de elaboração. Porém, embora o Acordo ainda não tenha sido oficializado nos termos das leis brasileiras, o Ministério da Educação já exigiu que os livros didáticos a serem utilizados nos cinco primeiros anos do ensino fundamental em 2010 fossem editados com a nova ortografia, o que causou um rebuliço no meio editorial. As obras que seriam submetidas a análise já estavam prontas e tiveram de ser relidas, e as concernentes à língua portuguesa precisaram ser reescritas, ou melhor, re-escritas. O edital para a compra dos livros foi publicado em janeiro, mas apenas em maio o MEC fez tal exigência. Como os protótipos deveriam ser entregues entre 26 de maio e 4 de julho, o prazo foi prorrogado por (apenas) 30 dias. Não cabem aqui todas as alterações, ínfimas na opinião de muitos. Nosso ministro da Educação, Fernando Haddad, garante que o país terá três ou quatro anos para se adaptar às novas regras. De início, Portugal impôs-se um período de seis anos para adaptar-se. Esta semana, Luís Amado, ministro português de Negócios Estrangeiros, afirmou que Portugal deve adiantar a entrada em vigor do Acordo para “acompanhar” o Brasil, que, segundo o ministro, “tornou-se o impulsionador da CPLP. Sem o Brasil ter esta decisão, estávamos parados".Coisas desse nosso Brasil varonil, um país de vanguarda.

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